Texto by Valéria Melki Busin*
A falta de conhecimento sobre a comunidade homossexual alimenta preconceitos de ordens variadas. Os estereótipos funcionam como categorias únicas e imutáveis nas quais os e as homossexuais são incluídos/as de forma quase irremediável, deixando-os/as atados/as, no imaginário popular, como se vestissem uma incômoda camisa-de-força.
Quando falamos sobre homossexualidade, para a maioria das pessoas o que vem à mente, e de forma quase automática, são tipos bem conhecidos: a bicha afetada, a travesti exagerada, a lésbica masculinizada. Poderíamos dizer que essas são as faces mais visíveis da homossexualidade. Aqueles/as que, por sua forma explícita de expressar sua orientação sexual, tornam-se mais facilmente reconhecíveis. No entanto, a diversidade de tipos e personalidades e na forma de se vestir e de se comportar é enorme entre os homossexuais, assim como acontece entre os heterossexuais. Dessa forma, existem os gays afeminados, as lésbicas caminhoneiras, as travestis escandalosas, como também existem gays com visual masculino, lésbicas muito delicadas e travestis ocupando a Academia e obtendo o reconhecimento que somente a elite da nossa sociedade consegue ter. Não existe um tipo único que nos represente, não existe um modelito - palatável ou execrável - que seja protótipo perfeito do/a homossexual padrão.
Outra idéia estereotipada que emerge quase imediatamente é que os homossexuais são, de forma genérica, seres sexuais por natureza, isto é, só pensam em sexo o tempo todo. O termo homossexualidade talvez tenha alguma relação com essa fantasia, pois exclui as outras esferas todas da nossa vida, tão ou mais importantes do que fazer sexo pura e simplesmente. Assim, somos percebidos por uma ótica distorcida, que nos reduz a uma sexualidade exacerbada, fora de contexto, imoral. É muito difícil imaginar que homossexuais trabalham, pagam contas, estabelecem relacionamentos afetivos, casam-se, criam filhos, possuem animais de estimação, têm amigos e, como todo mundo, selecionam seus parceiros com critérios que estão além da obtenção imediata de prazer.
Na nossa sociedade, a supervalorização do masculino como figura de poder cria sérias desigualdades entre homens e mulheres e entre heterossexuais e homossexuais. O fato de as mulheres serem socialmente vistas como menos competentes faz, por extensão, com que os gays sejam vistos como inferiores, pois não se pode admitir que seres nascidos do sexo masculino sejam supostamente mais delicados, sensíveis, e que se aproximem do gênero feminino, abrindo mão do poder e da glória de ser “macho”. Neste sentido, embora não se justifique nem possa ser aceito, entende-se perfeitamente bem por que os gays são ridicularizados e menosprezados. Da mesma forma, torna-se tão compreensível quanto inaceitável o fato de lésbicas serem também alvo de chacota e de escárnio, quando não de violência e abuso sexual.
Os gays têm de se defrontar constantemente com questões sobre sua suposta promiscuidade ou têm de, freqüentemente, dar satisfações à sociedade sobre a pedofilia. Isso é uma das grandes provas de que o preconceito distorce os fatos e enquadra seres humanos em categorias rígidas e absurdas.
Para os homens heterossexuais, na nossa cultura sexista que mantém tamanha desigualdade de gênero, ser promíscuo, isso é, ter muitas parceiras diferentes, é um valor positivo, é considerado como prova de que ele é realmente viril. Por que a suposta promiscuidade dos gays é condenada e a dos heterossexuais é valorizada? Trata-se, evidentemente, do mais puro preconceito. E é bom lembrar: se em alguns (raros) casos os gays se expõem fazendo sexo em locais públicos, trata-se de uma conseqüência da impossibilidade de serem aceitos em suas famílias, no trabalho, entre os amigos.
E vejam: a imensa maioria dos abusos e violências sexuais cometidos contra crianças e adolescentes é praticada por homens heterossexuais, normalmente conhecidos das vítimas: pais, padrastos, tios, amigos ou vizinhos. Nem por isso, os homens heterossexuais de forma geral são suspeitos de pedofilia a priori, nem são vistos como agressores de menores simplesmente por serem heterossexuais. Existem gays que praticam pedofilia? Claro que sim, mas são uma minoria em relação ao total dos gays, como acontece com os heterossexuais. E todos nós, como cidadãos e cidadãs, repudiamos essas práticas.
Ainda na linha da desigualdade de gênero e da desqualificação do feminino, como admitir que mulheres, criadas para serem dependentes, se não submissas (afinal, deveriam ser o sexo frágil, não é?), estabeleçam relações que simplesmente prescindem da figura masculina, tanto para exercer sua afetividade, como para sua sexualidade?
Nesse sentido, podemos pensar que as lésbicas sofrem preconceito de dupla ordem: por serem mulheres e por serem homossexuais. E são vistas como pessoas mal-amadas, que tiveram problemas sexuais com alguns homens e, por isso, seriam facilmente curadas por uma boa “trepada” com um homem “de verdade”. Ou são vistas, o que está claramente evidenciado nos filmes pornôs, como mulheres taradas e ávidas por transar com um homem bem-dotado, sendo que ele sozinho faria a alegria das duas.
A verdade é bem outra. As lésbicas têm atração por outra mulher para fazer sexo, sim, mas também – e talvez especialmente – para amar, estabelecer um relacionamento afetivo, casar, cuidar da casa e das contas, criar filhos e tudo o mais que faz parte da vida de todas as pessoas.
Entre as lésbicas existem as mulheres muito masculinizadas, sim, e existem as muito femininas - e todas as variações possíveis entre esses pólos. Existem as que tiveram problemas com os homens, como tantas heterossexuais também o tiveram. A grande maioria das lésbicas simplesmente gosta de outra mulher porque ninguém pode escolher por quem se apaixonar, isso não é privilégio de ninguém. O coração de uma mulher bate mais forte por outra mulher independentemente de suas experiências anteriores com homens, de suas preferências estéticas, das roupas que veste. Muitas, inclusive, já tiveram experiências sexuais bem satisfatórias com homens, mas não se apaixonam mais por eles. E não se trata de uma opção. Estamos falando aqui de se apaixonar, de amar, de sentir atração sexual: nada disso ocorre de forma consciente, por escolha. Da mesma forma que não é possível escolher se se vai ser destro ou canhoto.
A única escolha possível é viver ou não viver plenamente seu amor, seus desejos, sua sexualidade, sua afetividade. É bem possível um homossexual se casar com alguém do sexo oposto, ter filhos e seguir os padrões estabelecidos pela sociedade como mais adequados, como é possível fazer um canhoto ser treinado para usar a mão direita. Mas isso só se configura como uma impossibilidade de felicidade e de realização, ou ainda, se configura como uma violência enorme por puro e simples preconceito.
Então, diante dessa situação, uma enorme parte dos homossexuais ainda se esconde, se mascara, se disfarça, porque não é nada fácil passar a vida sendo ridicularizado, provocado e incomodado. Não se vive isso impunemente. A auto-estima sofre abalos imensos e o sofrimento é cotidiano. Para se proteger, gays e lésbicas se escondem e deixam de aparecer no discurso da sociedade como são de fato. Assim, os estereótipos acabam tomando formas cristalizadas e quase imutáveis.
As religiões de forma geral e, em nosso país, mais especialmente as religiões cristãs, que são professadas pela maioria absoluta da população (segundo dados da CNBB, quase 74% dos brasileiros são católicos), ajudam a piorar o quadro, pois realizam cruzadas contra o amor entre pessoas do mesmo sexo, alegando que isso se trata de pecado, de desvio moral, de aberração. Estamos cansados desse Deus tirano e incompreensível que os poderosos das hierarquias religiosas nos pintam. Será mesmo que Deus é contra o amor consentido entre duas pessoas? Será mesmo que Deus se importa mais com nossa sexualidade do que com o amor, o companheirismo, a cumplicidade e os valores éticos que cultivamos em nossas vidas? Será que
Deus se incomoda tanto com nosso amor, que se esquece das guerras inomináveis, se esquece da fome e da miséria que a desigualdade social gera? Será que Deus é tão cruel que ordena que em sua casa nós sejamos massacrados, condenados, excluídos, desrespeitados pelo fato de, simplesmente, sermos uma minoria? Será que Deus também persegue todas as inúmeras espécies animais que, comprovadamente, têm relacionamentos homossexuais? Eu, pessoalmente, não consigo acreditar nisso. Eu prefiro manter a imagem do Deus justo e sábio, que não se importa com tamanhas mesquinharias nem promove o ódio e a intolerância que, muitas vezes, legitimam a violência. Eu, pessoalmente, prefiro acreditar que nas igrejas e templos, nas cúpulas religiosas e nas encíclicas, o que acontece é que homens intolerantes usam
Deus para conquistar seus objetivos, mas se esquecem de ouvi-lo e obedecê-lo em seu mandamento mais belo: amai-vos uns aos outros.
Por tudo isso é que precisamos ainda de muita luta para mudar a mentalidade de toda uma sociedade. Por que ser canhoto não é problema, mas sim ser obrigado a usar a mão direita. Da mesma forma, ser gay ou lésbica não é nenhum problema, o problema é o que a sociedade faz com as pessoas nessas condições. Precisamos fortalecer e acolher os/as homossexuais em nossa sociedade para acabar com uma das formas de violência simbólica mais cruéis de nossa sociedade: a segregação e a estigmatização.
Se você não gosta de injustiça, se você não admite desigualdade, se você quer um mundo mais justo, humano e digno para seus filhos/as, pense nisso. Somos todos diferentes, isso não deve ser motivo para criarmos tantas e tantas desigualdades. Aprendendo a conviver com e a respeitar as diferenças estaremos ajudando a construir um mundo menos árido, mais tranqüilo para todos vivermos em harmonia. [E pra quem ainda não entendeu bem o que é o conceito queer, isso é queer! Totally queer!].
* Valéria Melki Busin é psicóloga formada pela Universidade de São Paulo e Mestre em Ciências da Religião na PUC/SP. É integrante da ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir, escritora e militante pelos direitos das lésbicas.
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