Mirian Goldenberg, nascida em Santos, em 1956, é doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
Uma pesquisa pelo seu nome no mais popular site de busca da Internet resulta em mais de 860 mil ocorrências, encontradas em fugazes décimos de segundos. O motivo para tamanha presença na rede é que seus livros, que não são poucos, são lidos por um público muito maior do que o costumeiramente alcançado pela pesquisa acadêmica.
O fato chama a atenção, sobretudo, quando é sabido que ela começou a sua formação na área relativamente tarde, apenas aos 32 anos, quando ingressou no curso de doutorado do Museu Nacional. Antes disso, enquanto se graduava pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e obtinha o título de mestre em Educação pela PUC do Rio de Janeiro, ao que se dedicava mesmo era à militância política. À época, não pensava em fazer carreira acadêmica, mas sim a revolução social, e entre seus autores preferidos estavam os indefectíveis Lênin, Marx e Trotsky. Militava em organizações não governamentais que prestavam assessoria ao movimento sindical e chegou a visitar Cuba, graças a uma carta de apresentação providenciada pelo velho líder do Partido Comunista Brasileiro, Luis Carlos Prestes. Até aí a sua trajetória não se diferenciava da de inúmeros outros jovens brasileiros de classe média, impacientes com as arbitrariedades da ditadura militar (que chegava ao fim) e seduzidos pelo ideário socialista.
Em 1988, ingressou no curso de doutorado em Antropologia do Museu Nacional, decidida a pesquisar a “revolução democrática” que ocorria na Nicarágua sob o controle dos sandinistas. Mas os acontecimentos subsequentes não permitiram. A pressão dos Estados Unidos e a resistência armada dos dissidentes levaram à realização de eleições e estas conduziram à presidência Violeta Chamorro, que nada tinha de revolucionária. Acabou a revolução, Mirian perdeu seu tema de pesquisa e o mundo acadêmico brasileiro ganhou uma pesquisadora capaz de despertar o interesse do grande público pelos estudos antropológicos.
A guinada deu-se num curso do professor Gilberto Velho, quando este propôs aos alunos que escrevessem um trabalho de final de curso sobre comportamentos desviantes. Mirian já pensava estudar questões relacionadas a gênero, graças à impressão marcante que a leitura de Simone de Beauvoir lhe causara (leu toda a obra da escritora francesa entre os 20 e os 25 anos). Perguntou-se sobre qual comportamento feminino poderia ser considerado mais desviante. E resolveu pesquisar e escrever sobre "a outra". Durante três meses, entrevistou oito mulheres amantes de homens casados. O trabalho final agradou tanto ao professor que este recomendou a publicação. “Era um livrinho de 83 páginas sem nenhuma pretensão”, diz. Mas, no mesmo ano em que chegou às prateleiras, 1990, A Outra virou capa de uma edição dominical do jornal Folha de S. Paulo, que lhe concedeu duas páginas inteiras; matéria do jornal O Globo; e objeto de atenção de várias emissoras de televisão. A Outra já está na oitava edição.
Mirian continuou a estudar o tema, ouvindo homens casados que têm e que não têm amantes, familiares com casos de amantes na família, etc. Assim foi se formando como antropóloga, pesquisando temas relacionados a gênero, família, infidelidade, sexualidade, masculinidade, entre um público bem definido: a classe média brasileira. A tese parecia haver reencontrado seu objeto, mas Mirian não estava satisfeita, uma vez que a situação da amante, se leva a marca da transgressão, ainda caracteriza-se, de algum modo, pela submissão da mulher à figura masculina. Foi, então, que lhe ocorreu pesquisar a vida de Leila Diniz, sobre quem pouco sabia, mas que associava a tudo que havia lido sobre mulheres revolucionárias que realmente mudaram hábitos e comportamentos longamente enraizados.
Foi assim que surgiu Toda mulher é meio Leila Diniz, publicado em 1995, que tem em Pierre Bourdieu e Norbert Elias as principais referências teóricas na reconstrução da trajetória daquela professorinha que se tornou atriz e chocou o país ao se deixar fotografar grávida, de biquíni. “Leila era tão desinibidamente livre que, após a célebre entrevista concedida ao Pasquim, o governo militar obrigou-se a editar um decreto proibindo manifestações culturais consideradas ofensivas aos ‘bons costumes’ – ficou conhecido como o ‘Decreto Leila Diniz’”, comenta. A tese não era uma biografia, mas um estudo antropológico sobre uma mulher na qual estão presentes as mulheres brasileiras de classe média dos anos 1960.
A partir de então, a sua trajetória seguiu por essa mesma trilha, a de pesquisar e discutir a condição da mulher e a liberdade feminina. E, se seus estudos estão ancorados teoricamente em Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Gilberto Freyre, Erving Goffman, Howard Becker, Roberto DaMatta, Gilberto Velho e outros, são duas mulheres que estão por trás de tudo que escreve: Simone de Beauvoir e Leila Diniz. A primeira enfatizava a liberdade relacionada à autonomia da mulher, à independência econômica. A segunda, segundo Mirian, tudo isso e mais o prazer, a alegria, o corpo, a sexualidade e a felicidade.
Há dois anos foi convidada a realizar conferências na Alemanha sobre a idéia que desenvolveu de “corpo como capital”. Segundo ela, no Brasil, o corpo é como um capital para as mulheres, sobretudo no que diz respeito às chances de ascensão social. E isso não se aplica apenas ao caso daquelas profissões nas quais as mulheres têm prestígio e sucesso como modelos, atrizes, cantoras. Numa sociedade em que ainda são poucos os espaços abertos às mulheres, o corpo é um capital para casar, ter filhos e ser protegida por um marido. Como ela acentua, “investir no corpo não é mera futilidade, como muita gente pensa”. “Aliás”, acrescenta, “Gilberto Freyre já chamava a atenção para o papel do corpo e da sexualidade na nossa cultura. Ambos sempre funcionaram positivamente, pois substituíram o extermínio pela miscigenação”.
Na Alemanha, entrevistando mulheres na faixa etária dos 50 anos, percebeu que elas se encontravam no auge da vida em termos de trabalho e poder e, com ou sem marido, com ou sem filhos, não escondiam o envelhecimento. Não pintavam o cabelo, usavam roupas largas e sapatos sem salto. Não queriam ser sensuais, nem aparentar jovialidade. De volta ao Brasil, Mirian ficou a se perguntar por que muitas mulheres brasileiras de mesma faixa etária viviam esse momento como sendo de decadência. Por que o discurso de tantas mulheres, profissionalmente realizadas e independentes economicamente, era só sobre perdas e nunca sobre ganhos neste momento da vida? Foi quando resolveu estudar o envelhecimento.
Segundo os dados que já analisou, no Brasil coexistem dois tipos de discurso: o da perda e o da liberdade. Segundo ela, que se confessa fascinada pelo discurso da liberdade, muitas mulheres dizem que este é o primeiro momento da vida em que podem ser elas mesmas. Já foram mães, já foram esposas e não têm que provar mais nada a ninguém. A diferença em relação às alemãs é que estas, desde jovens, não se acham obrigadas a cumprir todos esses papéis sociais para se sentirem livres. “As brasileiras, às vezes, demoram muito para descobrir o valor da liberdade. Até hoje, ter um marido é algo valorizado. Para as alemãs entrevistadas, tanto faz.” A pesquisa já rendeu outro livro, Coroas. A escolha pelo título está relacionada ao propósito de desestigmatizar o envelhecimento. Para não fugir à regra, o livro vem sendo lido por um público muito maior do que o especializado.
Uma das razões que explicam o sucesso da antropóloga fora do meio universitário, certamente, é o cuidado que tem com o texto. Mirian, além de antropóloga, é escritora. A paixão pela escrita começou cedo: desde os 15 anos de idade escreve todos os dias. “Tenho armários de coisas não publicadas. Se me encontrar um dia sem um papel e um lápis, não sou eu. Eu caminho escrevendo”, conta. Para sorte de seus leitores, há muito deixou Lênin para trás e tem em Norbert Elias e Gilberto Freyre modelos de beleza de um texto.
Mirian Goldenberg é também professora. Daquelas que gostam dos alunos e de ensinar. Foi para eles que escreveu A arte de pesquisar: como fazer ciência qualitativa em Ciências Sociais, publicado em 1997, outro sucesso editorial.
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