Heloisa Buarque de Hollanda é professora titular de Teoria Crítica da Cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ocupa um lugar de destaque na intelectualidade brasileira, sobretudo entre aquela ligada ao estudo da cultura contemporânea. Além de observadora, Heloisa é uma protagonista ativa da nossa cultura, de uma forma como as pessoas comuns não são. Segundo contou o jornalista Zuenir Ventura, no livro 1968, o ano que não terminou, ela promoveu o mais badalado réveillon que marcou o fim daquele ano, e daquela época, no Rio de Janeiro. Aos 29 anos, era então “mito e ícone da intelectualidade carioca”. Atropelada com toda a sua geração pela ditadura militar, não buscou o exílio, nem foi presa. Ficou a “juntar os cacos” da vitalidade dos anos 1960, na “ressaca ruim de 1968”, e encontrou coisas “maravilhosas”. Como não deixou de nos estudar, conforme o tempo foi passando, continuou a encontrar coisas boas.
Globo Universidade – A sua trajetória acadêmica e profissional a levou a um lugar de destaque na universidade brasileira. Como foi esse caminho?
Heloisa Buarque de Hollanda – Eu sempre tive uma relação de amor e ódio com a universidade. Meu pai era professor universitário e sonhava que eu seria também. Como toda filha faz o que o pai gosta, pois é apaixonada, ingressei na universidade. Mas sempre mantive um pé fora. Dava aula, mas fazia programa na TVE, não aguentava muito ficar ali. Porque eu acho que a coisa acadêmica é muito legal, mas não é o meu perfil. Tenho uma formação muito política, muito marcada pelos anos 1960. Eu vivi aquilo muito intensamente para segurar a onda de ficar fazendo uma produção muito acadêmica, só pesquisando, só escrevendo. A década de 60 me inoculou um vírus qualquer de procurar atuar. Isso gerou conflitos em muitos lugares. Na universidade, criei vários centros de pesquisa, como o Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC), voltado para o estudo das demandas de mulheres, negros e judeus. Mas todo mundo achava que era inútil e impróprio para uma escola de Comunicação. Não deu muito certo. Em 1993, criei o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, onde me dedico mais à reflexão sobre a periferia e o mundo digital. Também não encontro eco dentro da academia. A academia quer um outro tipo de produção, mais autorreferente, mais autocentrada nela mesma, e eu não tenho nem atenção para fazer isso. Porque eu me apaixono e saio voando com esses assuntos, que me mobilizam muito.
GU – Essa inclinação pela política veio da família?
HBH – Não, veio daquele momento, dos anos 1960, que eram muito apaixonantes. Eu me formei em grego, quer dizer: nada a ver com nada. Casei muito cedo, fui para os Estados Unidos e comecei a trabalhar como assistente de pesquisa no Centro de Estudos Latinoamericano, em Harvard. Foi na época do assassinato de Kennedy, imagine como fervia aquele lugar, naquele momento tão tumultuado. Larguei o grego e comecei a me interessar muito pela América Latina e pela cultura brasileira. Quando voltei, em 1964, era um tempo quente na política. Mergulhei de cabeça na universidade e vivi quatro anos de uma forma muito incrível, pois era uma universidade aberta, de debates, de crescimento. Tudo acontecia lá dentro, era um foco gerador. As passeatas saíam de lá. Eu dava aula de Literatura e Cinema. O cinema tinha uma presença muito forte, tanto no meu cotidiano, quanto naquela geração que assistiu ao surgimento do Cinema Novo. Eram aulas que não acabavam, pois entravam, no meio da aula, Zé Celso, Glauber Rocha – era um lugar de troca mesmo, uma arena muito importante. A universidade ficou na minha cabeça como um lugar em que se pode fazer isso. Depois ela retroagiu.
GU – Veio o AI-5 e o fechamento do regime.
HBH – E eu não fui para fora, nem fui presa: fiquei naquela universidade vazia, cheia de repressão, aquela ressaca ruim de 1968. Comecei a trabalhar então as poucas vozes dissonantes. Fui trabalhar com poesia marginal, que era uma resposta legal à ditadura. Como a poesia não era algo com o qual a censura precisasse se preocupar, porque o impacto político é nenhum, foi possível juntar uma massa jovem, legal, que misturava rock com poesia. Agora estou fazendo uma exposição sobre o Parque Lage do tempo de Rubem Gerchman, de 1976 a 1979, onde toda essa coisa se gestou: poesia, cinema alternativo, etc. Era um momento muito vivo, muito produtivo. Mas sempre no viés contracultural, que não era o do confronto, pois a cultura mais diretamente política perdeu espaço com a censura. Mas a outra era borbulhante e eu escrevi a minha tese de mestrado sobre isso. Fiz uma antologia para divulgá-la. Fiquei muito tempo trabalhando essas respostas à ditadura.
GU – Você teve uma experiência com cinema que foi além de escrever e ensinar sobre cinema.
HBH – Fiz vários documentários. Um deles sobre Alceu Amoroso Lima, a única pessoa que falava. Ele tinha uma relação direta com o Vaticano, então ninguém ousava calar a boca do doutor Alceu. Era complicado para os militares censurarem aquele cara que tinha linha direta com o Papa. A proteção da Igreja era muito forte e, por isso, ele tinha uma liberdade única de falar. O filme está na Fundação Alceu Amoroso Lima. Depois eu fiz um filme chamado Xarobovalha, sobre a última apresentação da peça Trata-me Leão, que ficou mais de um ano em cartaz no Brasil inteiro. O grupo “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, com Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita, etc., marcou um momento também muito importante dos anos 1970. Mobilizava. Minha preocupação era como aquela cultura do vazio ia conseguir se reconstituir com a força dos anos 1960. Um festival, qualquer coisa, nos anos 1960, era uma dose muito intensa de mobilização. Então, eu fiquei catando os caquinhos nos anos 1970, para ver o que ainda tinha potência. Fiz outro sobre Joaquim Cardoso, o calculista de Brasília, poeta e matemático. Depois passei a fazer muita cenografia. Fiz quase todos os filmes da Ana Carolina. Fiz roteiros. Naquela época o cinema era a mídia. E não precisava fazer bem feito, não é? Você podia fazer qualquer porcaria que dava certo. Qualquer um podia ser cineasta. Hoje não é mais possível fazer cinema daquele jeito.
GU – Além de trabalhar com a contracultura, você se interessou também pelo feminismo, não foi?
HBH – Sim, logo depois, nos anos 1980, quando emergiu a onda multiculturalista. Fui para os Estados Unidos fazer um pós-doutorado em Política e Cultura, na Universidade de Columbia. Chegando lá, percebi que no Brasil é muito difícil você ter maior clareza sobre o feminismo. No Brasil, ele tem traços muito próprios, é muito diferente do feminismo internacional. O crescimento desse debate foi nos anos 1960. Mas, então, estávamos em plena ditadura e a Igreja era um ponto de resistência da maior relevância. Então, aqui o feminismo não pôde acompanhar a mesma pauta: não podia falar em aborto, corpo, amor livre, nada dos temas internacionais. A possibilidade de se incompatibilizar com a Igreja fez com que o nosso feminismo só falasse de salário. Depois ele agregou temas relacionados à saúde e à violência, mas até hoje você não vê um debate aberto do feminismo sobre o aborto, por exemplo. Além disso, é muito difícil para a classe média brasileira perceber, no dia-a-dia, a questão da mulher. Eu mesma achava que não existia esse problema. Eu fazia o que queria, segundo a minha cabeça, casei e separei quando quis, então, não tinha problema. Mas quando fui para os Estados Unidos eu tive uma aproximação mais teórica do fenômeno, que foi muito importante para mim. Sobretudo o feminismo anglo-saxão, muito filosófico e psicanalítico, trouxe questões cruciais para a própria forma como vejo a vida. E eu, que fui para estudar política e cultura, acabei me embrenhando no problema da mulher. E, quando voltei, montei o CIEC, que procurava estudar questões relativas às mulheres, negros e judeus, todas elas marcadas por grandes ambiguidades.
GU – Como você vê certas demandas de recorte racial, hoje, no Brasil?
HBH – Eu nunca trabalhei com “raça”, nem acompanho isso de perto. Mas acho esquisito, isso. O que a gente queria trabalhar era justamente essa coisa da mistura que caracteriza o Brasil. Tem um livro ótimo do Ali Kamel sobre isso (Não Somos Racistas). Tudo é muito complicado, com mulher e com judeu também. A diferença no Brasil é um assunto muito belo, tem uma complexidade absurda e é preciso encará-lo como algo mesmo difícil. Não dá para fingir que somos norte-americanos e fazer igual. Não dá, porque não somos.
GU – Em 2004, escrevendo sobre o funk, você afirmou que o efeito da “cidade partida” não caracterizava mais a cultura carioca. Frases otimistas como esta são raras de se ler. Pode falar mais sobre ela?
HBH – Eu vou atrás do Zuenir, reparou? Ele fala em vazio cultural, eu digo: não é, está cheio de poetas. Ele parte a cidade, eu colo. Acho que a partir de meados dos anos 1990, ao menos no Rio de Janeiro, podem-se identificar canais cada vez mais abertos entre periferia e centro, talvez pela própria topografia da cidade. Comecei a analisar essas conexões e o que significavam em transformações mútuas.
GU – Mas essas conexões são novas mesmo? Nas primeiras décadas do século XX, o samba era coisa do morro e do asfalto. Noel Rosa, por exemplo...
HBH – Mas é diferente. Hoje há o problema do tráfico, que envolve muito dinheiro. É outra periferia. Ameaça. Não sei se ameaçava no tempo do Noel, onde havia apenas uma pobreza escondida. Hoje é uma guerra, uma Faixa de Gaza. Quando veio a abertura política, no início dos anos 1980, a sociedade civil voltou a se articular. Mas isso coincidiu com a chegada do tráfico e a favela não conseguiu se organizar de modo a apresentar suas demandas. Permaneceu nas mãos do tráfico e ficou mais rica, pois o tráfico faz circular muita grana. Então, é um lugar diferente daquele de Noel. Hoje, as questões são mais graves, o asfalto tem medo da favela e vice-versa. Mas, em 1993, começa a costura. Com a chacina de Vigário Geral, os intelectuais começam a ir para lá. Zuenir Ventura, Caetano Veloso, Regina Casé, Wally Salomão, todos foram para lá. O Viva Rio foi criado. Surgiram todos esses movimentos culturais. Porque aquela chacina foi muito marcante, veio na sequência imediata da chacina da Candelária. A coisa da violência começou a assustar e a classe média quis saber o que era aquilo, o que tinha ali. Então, começam umas conexões muito interessantes e que avançam de uma maneira promissora.
GU – Você é coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, que almeja compartilhar outros saberes que não os universitários. Como é isso?
HBH – Além do saber predominante, é preciso reconhecer outros saberes para compreender o mundo de hoje. De ativistas, artistas, pessoas da periferia. Estas últimas, eu chamo regularmente para conversar. Agora mesmo estou dando um curso, chamado Colisões, no qual reúno uma garotada e um grafiteiro de Nova Iguaçu, alunos de Comunicação e mais a poeta Bianca Ramoneda. Não estamos assistencialisticamente oferecendo o saber da UFRJ para Nova Iguaçu. Eles vêm, trazem os temas, a poeta ajuda, o grafiteiro interfere na poesia, é uma troca. Estamos fazendo uma obra conjunta, que redundará num evento, que nós não sabemos ao certo como será, pois ainda está em processo de criação. A gente mistura e o resultado é muito mais rico do que um encontro acadêmico, não tenha dúvida.
GU – Como é ser diretora e proprietária de uma editora com as características da Aeroplano Editora e Consultoria?
HBH – É uma droga, não dá um tostão. Agora estou conseguindo, com a série Tramas urbanas, editar livros com o patrocínio da Petrobras. Trata-se de uma coleção na qual a periferia conta a sua própria experiência, ninguém se mete. Uma coisa é um antropólogo escrever sobre hip hop, outra coisa é o próprio artista falar. Agora mesmo vou fazer um (livro) com motoboys de São Paulo, que são muito articulados, fazem centros culturais, exposições de arte. Há uma fissura hoje por escolaridade que é fascinante. O cara que criou a associação de motoboys tornou-se filósofo, formado pela Universidade de São Paulo (USP), e continuou trabalhando como motoboy. Escreve divinamente. O rapaz que fez o livro sobre o rap está fazendo doutorado em Comunicação.
GU – É uma geração da periferia que está se educando?
HBH – Está se educando, sim, e está sacando que sem educação a situação social deles não melhora. Ficou claro para esta geração que ela tem que estudar.
GU – Então você é otimista?
HBH – Eu sou. Só estão acontecendo coisas boas, desde 1960. Desde aquela época eu só vejo grandes surpresas, maravilhosas.
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